domingo, junho 26, 2005

A Culpa

Por detrás de todas as calças e casacos, na parede que é escondida pelo roupeiro, existe um cofre. Quando o Sr. Joaquim se mudou para esta casa, já o cofre povoava a parede branca do compartimento que viria a ser o seu quarto. Muitas perguntas fez para si mesmo sobre o referido objecto: Porque o teriam ali colocado? O que nele teriam querido esconder? Uma quantidade enorme de questões que não adianta estar aqui a enunciar, pois não acrescentam nada a este simples e modesto relato. E, sem saber muito bem porquê, o Sr. Joaquim decidiu escondê-lo, para que se tornasse secreto, colocando-lhe à frente o roupeiro.
Não que o Sr. Joaquim tenha segredos macabros (que certamente não caberiam num simples cofre) que ninguém possa sequer suspeitar, mas, como qualquer Ser Humano, tem partes de si que não ousa contar a ninguém. Existem recantos do nosso ser que não devemos revelar ou partilhar, devemos deixá-los no conforto da nossa consciência, ao invés de lançá-las no caos do mundo exterior. E quando essa necessidade latente de esconder um recanto mais obscuro do seu ser gritar mais alto, terá naquele cofre a solução. Isto quem o pensou foi o Sr. Joaquim quando decidiu esconder o cofre.
Mas o que guarda lá dentro agora parece tão descoberto, tão nu, como se estivesse em cima da sua secretária, à vista de todos. O objecto que lá guarda causa-lhe náuseas. Guardou-o lá para o esconder de si mesmo, para que a sua consciência não o corroesse. O Ser Humano tem destas coisas: o impulso concretiza o acto, e a consciência fica parada a olhar enquanto o mal é feito, e depois ainda tem coragem para nos reprimir. Mas, como disse, parece não existir nada que separe este homem do objecto que escondeu dentro do cofre. É como se por entre as portas de madeira do roupeiro e calças e casacos conseguisse ver o objecto que tanto teme. O Sr. Joaquim sua. Sua como se tivesse um oceano a transbordar do seu interior. Já está em tronco nu. Estando em pleno Inverno, não parece uma atitude muito sã, a não ser que estivessem cem aquecedores ligados dentro de casa, o que não acontece, mas é para vermos até onde a tensão e o medo nos podem levar. Lentamente, num sumptuoso exercício de memória, vai relembrando todos os pormenores daquela noite de escuridão infinita, de breu ilimitado, onde a lua era a única fonte de luz, débil, diga-se, e onde cada passo parece guiar-nos para um abismo que não vemos, mas que temos consciência que existe.
Há já um mês que todos os dias se dirigia àquela mata, onde nunca passa ninguém, longe de tudo e de todos, para descarregar a sua raiva, disparando uns tiros, ora para o ar, ora contra as árvores, com o seu revolver. E, nessa noite, algo aconteceu que não estava nos seus planos. Um transeunte atravessava tranquilamente a mata quando é atingido por uma bala perdida, vinda do revólver do Sr. Joaquim. Ora, desorientado, o Sr. Joaquim acorreu, ainda assim, a ajudar o homem que tinha atingido. Mas, por infortúnio, quis o destino que a bala perfurasse logo o órgão mais importante do corpo humano, aquele que nos faz tomar decisões, que vulgarmente conhecemos por cérebro. Não havia nada a fazer, o homem estava morto, e o responsável pela sua morte era o nosso herói.

(O homem fixava de uma forma inumana Joaquim, como se a alma estivesse a ver por detrás do corpo inanimado).

O Sr. Joaquim limpa a testa com um lenço que tinha em cima da secretária. São duas da madrugada. Tenta acalmar-se, mas o seu coração bate como na noite em que disparou o fatídico tiro. Há dois dias que não dorme. Sempre que fecha os olhos, a imagem do homem a olhar para si aparece, como um fantasma perpétuo. Tudo lhe parece desconfortável: a casa demasiado vazia; o quarto demasiado opressor; a rua demasiado povoada. Não sabe o que fazer. Acabou de tomar dois comprimidos para dormir. Daqui a minutos estará no mundo dos sonhos, tentando fugir a estes pesadelos da realidade.



O sono foi curto. Os fantasmas também o perseguiram em sonhos, transformando-os em pesadelos impossíveis de suportar. Olhou o relógio eram sete da manhã, Nada mau, pensou. Para quem não dormia há dois dias, dormir tantas horas era um milagre. Mas foi como se não tivesse dormido: sentia-se tão mal como antes; a consciência pesava-lhe como se mil quilos de chumbo se tivessem instalado dentro da sua mente; a culpa corroía-o por dentro, como se de um cancro se tratasse, que vai minando cada pedaço do corpo, só que neste caso, a parte afectada é a consciência. Não aguentava. A consciência de que tinha morto uma pessoa e de que nada fez para a salvar não o deixava pensar. Além disso, quando ligou a televisão a fim de se distrair um pouco, todos os canais davam uma notícia de última hora de um rapaz assassinado, com um tiro na cabeça, numa mata. E isto foi a gota de água. Não aguentou mais e tomou uma decisão, uma decisão desesperada, mas, na sua opinião, capaz de o libertar da culpa que sentia.
Afastou o roupeiro e abriu o cofre. Tirou do seu interior o revolver e colocou-o na boca. Fechou os olhos. Viu o rapaz a olhar para si, morto. Orou ao seu deus sem nome que nunca ninguém viu. Pediu piedade. Puxou o gatilho.

(…silêncio…)

A culpa desaparecera, mas a consciência não…

22. 05. 04.

O Reflexo do Ódio

Sempre fui bem sucedido, tanto profissional como emocionalmente na vida. E só hoje compreendo que o modo de vida que adoptei, e que por conseguinte me levou a ser bem sucedido (ainda que este sucesso seja discutível, como quase tudo, aliás) foi um grande erro. Todos os dias eu olhava a minha imagem reflectida no espelho. E, num dia em que não conseguia esconder o ódio de quem olhasse, porquanto ele fervilhava como água em ebulição e ardia como magma de um inferno vulcânico em meus olhos, decidi que a partir desse dia, deixaria todo o meu ódio, todas as minhas frustrações, todas as partes mais sujas do meu carácter, todos os traços e riscos de loucura da minha personalidade presos no espelho onde me mirava todos os dias. Passei então a ser amável perante tudo e todos. Todos me amavam, menos eu. Todos me achavam um homem exemplar, menos eu. Porque o que eu mostrava não era eu.
E todos os dias eu alimentava o reflexo no espelho com tudo o que era mau em mim. E ele crescia. A sua inteligência e perspicácia aumentavam, aos poucos, ele ganhava vida própria. Por vezes perguntava-lhe se gostava de ali estar, acarretando com todo o meu ódio. Ele desprezava-me, e eu via o ódio dele, quer dizer, o meu ódio, não sei, arder nos seus olhos. E eu vivia a minha vida fingindo não ter pecados, nem rancores, nem ódios, nem frustrações, fingindo ser perfeito, quando na verdade não o era, como ninguém é, de todo. Mas assim é o ser humano, passa para segundo plano, ignora os sentimentos mais horrendos, quando eles são tão legítimos como os bons, e por vezes mais sinceros, quando deveria aprender a viver com eles. Foi então que tudo chegou a um ponto extremo. O ódio fortaleceu-se, e o meu lado bom foi-se tornando mais frágil. Mas não é por ter sido uma pessoa que eu não era, que sinto estes irreversíveis remorsos. Mas sim por saber que a minha parte má anda pelo mundo a espalhar o meu ódio, e que eu, a parte supostamente boa, não posso fazer nada, estou impotente, pois estou preso neste espelho.

23/10/03

O Peso Da Vida

O mal é quando tentamos pesar a vida. É evidente que ela tem peso, mas tal não quer dizer que a possamos pesar. E a vida pesa. Pesa muito por vezes. Pesa mais do que aquilo que podemos aguentar. Mas ainda assim, é inútil pesá-la. É como tentar medir o universo. Supõe-se que seja infinito. Ninguém pode ter a certeza (como de todas as coisas especiais, nunca se tem a certeza, mas no fundo, sabe-se). Pensem no absurdo que seria medir o universo. Já está? Assim é com a vida. Ela expande-se, em todas as direcções, em fundo e em largo, e não tem fim, até terminar. Peço desculpa. Estou a confundir alguém por certo. Vou abrandar.

Os problemas só o são, quando temos a absurda ideia de tentar resolvê-los. Não notem em mim algum receio das acções. Mas sempre fui um adepto da passaividade, da espera. O Budismo ensinou-me que quem espera sentado na beira do rio, verá os seus inimigos serem arrastados na corrente. E enquanto eu não quis resolver os nossos problemas, estava tudo muito bem. Mas eu quis. E vi-os claramente em nós. Eu que sempre fui adepto da espera, que sempre achei que a violência só leva à violência (e continuo a achar), vi-me obrigado a agir de forma repentina e violenta (cá está a analogia!).

Toda a gente diz que sim, e eu sei-o. Mas tenho a necessidade de ter a certeza. Não me perguntes o porquê que eu não o sei. Acho que a carência dá cabo de mim. E então, toda a gente o consegue ver, menos eu. Toda a gente diz: Ela ama-te. Mas eu não o vejo. Mas sei-o. Juro. Por outro lado, começo a pensar (porque apesar de seres perfeita, tens aí alguns defeitos) que tu demonstras aos outros, e te esqueçes de demonstrar a mim. O que é estranho. E o pior é que podem ser as duas coisas. Tu não me mostras, e eu quero ainda mais demonstrações. Mas vou deixar-me disto. Estás quase a voltar. E eu quero ser feliz contigo. Vou deixar de lado idiotices como pesar a vida e tentar medir o nosso amor (que tal como o universo é infinito), e vivê-los, aos dois, que, ironicamente, é a coisa mais racional a fazer.

sexta-feira, junho 24, 2005

Sombras

"Ain't found a way to kill me yet
Eyes burn with stinging sweat
seems every path leads me to nowhere
wife and kids and household pet
army green was no safe bet
the bullets scream to me from somwhere."
Alice In Chains

Lentamente me conduzo por entre as árvores, nesta floresta onde não se consegue distinguir o que é real do que é ilusão. Sombras; tudo se resume a sombras. Já nem tenho a certeza se sou ou não real. Mas afinal, se não fosse essa consciência da minha realidade, perene e persistente, que outra razão teria eu para justificar os passos que dou, provavelmente, em vão?
(não sei)
A verdade é que de há uns tempos para cá, que a minha existência é um enorme e assustador ponto de interrogação, já não existem certezas, nem sequer vislumbres delas. Tudo o que me parecia certo, um dado adquirido, um facto consumado, irrevogávelmente verdadeiro, desapareceu e a única certeza que, dantes, eu tinha, que permanecia invicta, acima das outras, como se fosse feita de uma massa mais resistente às resignações humanas, caiu: agora, já nem a certeza de que existo se mantém.
No meio da tanta sombra, também eu me tornei uma? Não sei. Como disse, tudo na minha vida são dúvidas, e as respostas não se dignam a mostrar-se perante os meus olhos. Será que posso chamar a esta sucessão de dias, a este amontoado de passados, a estes desejos de futuro, a este presente incerto, vida?
(Toda esta obscuridade é apenas iluminada pela fraca luz da lua nova. Pressinto na escuridão os olhares dos seres vivos a olharem para este ser meio morto - eu)
Qual será o propósito desta viajem? Não sei. A única coisa que sei, é que, num momento da minha vida que não me consigo recordar, eu optei por alguma coisa, que me segrega agora, da qual sou dependente e da qual sou incapaz de me libertar. Talvez seja só solidão auto-imposta. Mas eu na altura sublinhei: eu não quero estar só, quero estar sozinho. Mas quem me deu as directrizes não percebeu. E eu fiquei só. Acho que já me habituei à solidão, e tudo o que o ser humano assume como hábito, entranha-se, na carne, na alma, nas paredes do nosso universo pessoal, e só muito dificilmente conseguimos apagar os vestigios desse mesmo hábito. Mas por outro lado, já não consigo suportá-la.
Agora mesmo, ela caminha, comigo, a meu lado, como um corpo vivo, enquanto eu me dirijo para lado nenhum. Ela não tem cara. Todo o seu corpo é um espelho. É por isso que evito olhar para ela: porque se olhar vejo-me a mim. E não há nada mais doloroso do que ver a própria imagem quando não sabemos quem somos.
Agora percebo qual é o propósito da minha viajem,
(pego no revólver):
A morte. Só com a morte me poderei libertar desta solidão que me persegue. Não existe outra solução. De um fôlego, carrego no gatilho. O corpo da solidão cai, morto, na lama, e esvai-se em cinzas, pois não havia essência naquele corpo. E todas as sombras são expelidas do meu corpo.
No momento seguinte surge a resolução: voltei a ser um homem outra vez.

01.01.2004.

quinta-feira, junho 23, 2005

Estátua (Camilo Pessanha)

«Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado:

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.»

A matéria das palavras (Ana Hatherly)

«Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.»

Excesso (Pedro Barroso)

«Há amores estranhos fundos sem razão
- são secretos vivem na cumplicidade
indizíveis nas palavras que aqui vão
são impróprios de viver em liberdade
levaram a ternura ao exagero
e a um excesso saboroso a nossa pele
só compreende quem sente o latejar
bem mais dentro que os olhos do olhar,
há amores que não posso aqui explicar
pois quer queiram quer não inda vivemos
na pré-História de um Futuro de cem mil anos
nas grutas de um sentir que não sabemos
há uma palavra escandalosa e proibida
quando se fecha a porta e começa a fantasia
e me sento no sofá e desligo-me da vida
e fico Senhor completo do teu corpo
e o código começou e tu me ofereces
o máximo que alguém nos pode dar
e a guerra não tem hoje nem tabus
são duas vontades grandes que ali estão
e mais que as mãos e a boca e o Futuro
e o vício de dois corpos seminus
amarro em ti a vida que me escapa
e acordas-me explicando o mundo todo
e cedo a esta raiva que me mata

e sinto em ti Mulher, Mulher de mais
e houvesse aqui, agora, já, um altar
e eu casava-me contigo poro a poro,
casava-me contigo em todos os rituais
se é que não estou exactamente assim casando
o ontem com o presente e o infinito
e a cada jogo beijo salto ou grito
pressinto o chão fugir e o mundo longe
e há um abuso consentido que não peço
e tu olhas-me plácida e tremente raiva e calma
e a tormenta desabrocha e sai de nós
pela porta escancarada do excesso.»

domingo, junho 19, 2005

Ensaio do Abandono

«(...) Quero odiar-te e não posso! O desespero é cego!
Desvaira-se a razão na inconsolável dor!
Mas o ciúme cruel paira como um morcego
E anuncia o fatal crepúsculo do amor!

Eu sei que hei-de esquecer-te; o afecto é quase extinto;
E se a traição produz revoltas e desejos,
É porque muita vez em sonhos ainda sinto
A boca incendiada ao fogo dos teus beijos! (...)»


António Feijó (Poesias Completas)

sábado, junho 18, 2005

Tarde das facas longas

Estava ali. Á tua porta.
Tudo temia mas ao mesmo tempo tudo me fazia ter mais força, por ti.
sentia-me destemido, único e honroso.
toquei duas vezes.
A tua voz ácida rompeu o silencio que me encorajava para o transformar em receio, apenas disseste “entra” mas a mim pareceu-me “morre”.
entrei, e subi pelo elevador que já me esperava cá em baixo. Ao sair do elevador respirei fundo e tentei libertar-me da culpa que me sufocava. Eu sei, sou culpado por tudo ter acabado. Mas sentia-me com força para te ter de volta. Então aproximei a mão da porta e por instantes hesitei...mas bati.
Abriste a porta e a tua presença asfixio-me, queria puder fugir e correr para os braços da minha mãe, dizer-lhe “mãe, tenho vergonha de mim”.
A verdade é que não consegui dizer nada, apenas consegui esboçar um sorriso que a ti deve ter suado a cinismo, então retribuíste-me com um olhar baço e cansado:
- olá, entra- mas na tua face não havia nada além de traição, rancor e ódio.
Passaste para trás da porta e eu entrei. Nem olhaste para mim mas não levei a mal, apenas sussurrei de mim para mim mesmo “cada um tem aquilo que merece!”.então segui-te até ao quarto e ao passar por um corpo qualquer disse:
- boa tarde- com uma voz viva.
Mas não obtive resposta o que me vez estremecer,sentia-me uma criança com o destino nas suas próprias mãos, só depois me lembrei que era mesmo isso que eu era, então prossegui a trilha que me levou ao teu quarto onde já tinha sido feliz e que agora era repleto de silencio e cinzento.
Sentei-me na cama e para me sentir seguro e disse:
- Posso? – mas não consegui evitar que a minha voz saísse trémula.
Senti-me tão mal quando ouvi um “não” irónico que não queria dizer que não me podia sentar mas que não podia estar seguro.
Limpei a testa do suor e tu continuavas sem olhar para mim mas prossegui:
- Olá – e senti-me estranho por ser a primeira vez que lhe dizia algo nessa tarde.
estava em coma. Parecia que nunca soubera o significado de ser feliz. Tudo era vazio, então perguntei-me “sara, tu vives aqui? Dentro deste covil de dor?”.
Não me lembro muito bem do que falamos nessa tarde pois não estava nem vivo nem morto, estava num limiar de sofrimento a que chamam “coma”.
lembro-me que me lamentava, dizia qualquer coisa como “será que o nosso amor acabou? Eu não tive a noção do seu final”, “ não percebes que te adoro?”, “ eu errei, mas será que o nosso amor não merece mais oportunidades?”. Como resposta tinhas sempre uma voz rancorosa e ácida “o nosso amor nunca existiu para ti”, “ tu não precisas de mim para nada”, “não vale a pena dizeres que erraste, se ao menos mudares em alguma coisa... mas não mudas”.
Será que não percebeste que estava ali a tentar mudar?
Lembro-me que não te disse aquilo que fui lá para te dizer, por incapacidade. E lembro-me também e disso nunca me esquecerei, da tua voz irónica e amarga.
Não me recordo de um segundo de felicidade nas horas em que estive contigo nesse dia, apenas me recordo de um “adeus” frio e ter saido pela tua porta ás chicotadas a mim mesmo.
O ódio crescia em mim. Mas era o pior de todos os ódios, é aquele que sentimos por nós próprios.
Fui sozinho para casa, passava pelos estranhos na rua, mas agora pareciam ainda mais estranhos. As ruas estavam vazias. O teu nome estava escrito por toda a parte, e ecoava em mim como se me quisesse martirizar para sempre.
Continuava a pensar de mim para mim “cada um tem aquilo que merece” e esta frase só a conferia a mim.
Sentia-me cada vez mais longe de mim, nesse momento, era mais uma vez apenas uma criança com o destino nas mãos, mas agora esse mesmo destino sussurrava-me “será que tudo acabou?”.

terça-feira, junho 14, 2005

Eu vou partir, sabias?...

«Despeço-me de ti que não existes
em parte alguma deste mundo igual
a tantos outros. Os teus olhos tristes

pertencem-me, já sei, mas de que vale
captar o seu brilho se ninguém
conhece a voz da noite? É esse o mal

que ao ver-te me seduz- talvez um bem
maior que todos os prazeres da vida:
aceitar a memória do que vem

ter comigo nas horas em que a ferida
recomeça a sangrar. Por mais que tente
curá-la, não consigo: a dor sentida

parece mais liberta quando mente
deveras aqui dentro(...)
pra onde quer que estejas. É assim:
despeço-me de ti que não existes,
mas hás-de acompanhar-me até ao fim.»

(Fernando Pinto do Amaral)

segunda-feira, junho 13, 2005

Reflexões Sobre O Dia Da Independência

...é muito estranho para mim compreender a razão porque as memórias aparecem quando decidem aparecer...

Foi no dia 4 de Julho. Mentira. Foi uns dias antes. A mensagem (aquela mensagem que ainda doi, só de me lembrar que o toque do télemovel foi igual aos outros todos, e eu não pude pressentir o que vinha por aí), veio uns dias antes. Não me lembro bem as palavras certas. Lembro-me apenas que recusavas o meu beijo. E isso doeu-me como uma facada lentamente inflingida. Recusavas o beijo e recusavas o afecto. Recusavas tudo.
Mas ainda assim (como não te via há umas semanas) fiquei naquela estúpida esperança de que quando me visses mudarias de ideias, e manti-a, mesmo quando estava a avançar para ti, a sorrir, para disfarçar qualquer hemorragia interna, como sempre fiz. A fazer-me de forte, a ser estúpido, basicamente. Mas tu não mudaste. Disseste-me na cara "acabou", deste-me as razões, a + b = ab, como só aqueles que não estão apaixonados conseguem fazer. E eu fiquei parado. A sorrir. A disfarçar a sensação de que tudo me doía.
Era o dia da independência dos Estados Unidos da America; era a final do Euro 2004, Portugal - Grécia, grande espectativa. Lembrei-me de tudo isto. Do dia da independência porque nessa altura o Superunknown dos Soundgarden era presença assídua no meu discman, e uma das músicas que me "perfurava" mais era precisamente o "4th of July", e então arranjei logo trinta e uma mil analogias entre a canção e o que se passava na minha vida, quando agora vejo que a canção é mesmo irónica e sobre o dia da independência dos EUA. Era engraçado: eu também ganhara independência, e estava desfeito. Quando a independência vem com o vazio como anexo, é preferível não vir.
Lembrei-me da final do Euro 2004, porque tinha de apanhar o comboio para ir ver a final a casa de uns amigos. No final, Portugal perdeu. E, de certa forma, fiquei contente com a derrota. De outra forma, todos me perguntariam o porquê de tamanha nuvem por sobre a minha cabeça. Mas assim foi melhor. Eu não fingi. Eles sofreram pelo futebol. Eu sofri também. Por ti. E eles não estranharam o sofrimento.
Despedi-me de ti. Sempre cínico. Disfarçando o meu interior em ruínas. E lembro-me de seguirmos por sentidos opostos, não só metaforicamente, factualmente mesmo. E de eu olhar ainda umas vezes para trás, na esperança que viesses a correr, para os meus braços, sarar a ferida. Tu nem sequer olhaste para trás. Nem vieste a correr.
E mesmo assim eu não deixei de acreditar...

domingo, junho 12, 2005

Que fazer com o ódio?

É certo que já havia lido algo sobre o assunto, mas nunca o achara verosímil. Achava até, que a inverosimilhança era total. Mas, pronto enganei-me. E não é tanto pelo facto de aqui estar, que me rói o espírito e a mente, porquanto aqui até nem se está mal, mas sim por me ter enganado, e por isso estar irremediavelmente fixado nas paredes da minha mente tortuosa. É que para mim, na vida, tudo era baseado nas minhas verdades absolutas, até ao momento presente. E quem é como eu era, sabe que ver uma das suas verdades absolutas desintegrar-se à sua frente, como um casulo que outrora era robusto, mas que de um momento para o outro, é varrido por uma rajada mais furiosa de vento, é doloroso.
Que vou ter de lidar com este engano, com este erro, até ao fim da minha vida, é já um dado consumado, mas o que realmente me assusta, é que o facto de aqui estar, não seja uma consequência do meu engano, e sim das verdades absolutas que ainda não se varreram, mas que estão por um fio agarradas.
O sítio onde estou parece-se com uma cidade verdadeira. A vida que finjo que vivo também. Este mundo, que embora não o sendo parece real, é gerado, única e simplesmente pela minha mente e pelas suas absolutas verdades e irrevogáveis certezas. É que aqui onde estou, tudo é como eu quero que seja, tudo é perfeito, no meu conceito de perfeição, obviamente. E foi exactamente neste ponto que eu descobri que nada disto é real. Tudo o que cheiro, vejo, saboreio, sinto, oiço e vivo, faz parte da minha prisão mental. E agora, intrigados, vocês indagam, E que mal tem isso, se tudo é perfeito, não existe problema nenhum em viveres aí. Mas é que quando eu penso, ainda que involuntariamente, que odeio uma pessoa, ela desaparece, como que magicamente. E isso é mau, indagam vocês. Pergunta à qual não sei responder, mas digo-vos, toda esta perfeição acaba por enlouquecer qualquer um, e este facto leva-me a perguntar o que acontecerá quando eu enlouquecer e começar a odiar tudo o que me rodeia, inclusive a mim mesmo.

10. 2003

sábado, junho 11, 2005

Estória possível sobre a criação da canção Lover, You Should’ve Come Over (exercício de imaginação)

"Sometimes a man gets carried away, when we feels like he should be having it's fun. And he's much to blind to see the damage he's done. Because sometimes a man must wake to find that really he has no one" Jeff Buckley

São três e meia da manhã e o sono insiste em manter-se (ainda) bem longe.
Dentro do quarto ouve-se apenas a sua respiração, intercalada por alguns suspiros. Por vezes, o ruído de um carro ouve-se, vindo do exterior, ainda que muito esporadicamente. Tudo o resto se encontra mergulhado no silêncio da noite.
Apodera-se de si uma solidão que o sufoca. O seu desejo é ir dar um passeio, a meio da noite, como gosta de fazer, sentar-se num banco longe de toda a gente, só ele e a sua guitarra, e cantar olhando a lua. Ainda que lute contra esse desejo, tanto pelo facto da violência que agora prolifera nas ruas dos suburbios de Nova Iorque como pelo frio que faz lá fora, afinal já estamos quase no fim de Outubro, e acima de tudo isso, não consegue encontrar a temperatura perfeita dentro de si. Ainda assim, com todos estes senãos, decide fazer o que lhe apetece: pega na sua guitarra e sai.
Durante algum tempo vagueia em busca do local perfeito para a sua actuação.
O céu está admiravelmente limpo para uma noite de Outubro. A lua espalha o seu brilho pela cidade adormecida e, ao invés de ser assustadora, a noite torna-se sensual. E a sensualidade envolve-o e a sua guitarra. E nesse momento começam a aparecer os primeiros acordes, depois os primeiros versos, contando uma estória distante, cujo protagonista é ele mesmo. E era como se Deus estivesse a cantar por aquela garganta, porque é impossível descrever a perfeição do que se estava a passar.
E ele sempre fixando a lua, ainda que os seus olhos estivessem fechados.
E enquanto cantava era impossível não se reparar no que se passava ali. Porque cantava com toda a emoção que existia dentro de si a transbordar, num turbilhão de sentimentos, como se de repente, fosse impossível conter um único impulso nervoso que se acendesse dentro daquele corpo.
Quando terminou o mundo não era mais o mesmo. O brilho da lua ficou mais intenso. A sensualidade da noite ficou mais cheia. A sua voz ecoava no silêncio, e tudo ficou preenchido. Até o vazio.
E dos seus olhos fechados, corriam lágrimas.

24. 10. 2004.

sexta-feira, junho 10, 2005

O Culminar Do Mal

É estranho. É realmente estranho. As pessoas passam, olham e depois ou ignoram, ou ficam a olhar com uma estúpida curiosidade infantil, ou se sentem horrorizadas, enjoadas, repudiadas. E afastam-se. É relevante referir que nenhuma delas faz algo de modo a me tirar da situação em que estou. É verdade que um homem ensopado em sangue não é bonito de se ver, mas podiam chamar uma ambulância, ainda que eu não o queira, para me socorrer. E não obstante ser uma sensação nada agradável, desconfortável, não culpo o agressor, até lhe agradeço. Nos últimos tempos andava com uma sensação de mau estar. O latejar da minha cabeça era permanente e principiava a tornar-se insuportável. E o que não me faz estar com medo do que virá depois da vida é o facto de me sentir morto de algum tempo para cá. Aliás, agora que penso nisso, acho que nunca estive realmente vivo.
Relembro o momento do assalto com uma certa nostalgia. Ia a atravessar a rua transversal à da minha casa, e foi quando ele, o assaltante, apareceu. A faca a trespassar a minha carne, a rasgar as minhas tripas, o sangue a jorrar para o chão. É certo que doeu, mas é bonito.
(O único facto que lamento, além de não saber o nome do agressor, é o facto desta cidade se estar a tornar, progressivamente, mais violenta.)
Até a delicadeza com que me tirou a carteira do bolso foi agradável. Obrigado assaltante, sejas tu quem fores. Já há algum tempo que queria acabar definitivamente com a vida que já não sinto a correr-me nas veias. Aquela facada, para muitos teria sido a maior desgraça das suas vidas e consequentemente a última, mas para mim foi uma lufada de ar fresco. A sério! Parece que finalmente consigo respirar um ar outrora conspurcado com toda a hipocrisia, a promiscuidade, o cinismo humanos. Agora sou livre! Vou-me embora.
É verdade que é paradoxal, e até irónico, mas foi no fim da vida que encontrei paz e felicidade. Porém, sinto uma enorme amargura por já não poder comunicar ao mundo que a sua salvação é o fim da humanidade. Mas tenho fé que, tal como tem vindo a suceder, a humanidade acabe por se auto-destruir, antes de destruir o planeta por completo. E não me podem acusar de não ter feito a minha parte, pois vou morrer dentro de instantes, e essa conquista já ninguém me tira.
08. 11. 2003

O Paciente

O psicólogo olhou expectante para o paciente. Esperou uns instantes e perguntou:
- Houve algo na sua infância que o tenha marcado?
- Houve, sim, respondeu o paciente. E lembrou-se do Pai Natal sorridente, sorriso esse que se confundia entre a serenidade e o cinismo. O seu sorriso perturbava-o, pois prometia presentes que nunca chegavam e por isso o paciente passava horas, absorto, a olhá-lo.
- Houve, sim, repetiu o paciente. Houve uma bola de vidro, com a qual eu passava horas a brincar, enquanto criança.
- O que o fascinava nessa bola de vidro? Perguntou o psiquiatra.
- O que me fascinava (fez uma breve pausa, para tornar ainda maior a expectativa sobre o que ia dizer). O que me fascinava era a sensação de paz, de que, dentro da bola de vidro, tudo era perfeito, não havia mal.
- Sim, mas não se esqueça que mal e bem são só duas perspectivas diferentes sobre um mesmo ponto, são duas faces da mesma moeda.
- Assim é. Caso contrário não estaria eu preso nesta bola de vidro, na companhia de um Pai Natal sorridente, que agora sei cínico, disse o paciente resignando-se à sua nova condição.

07.10.2003

Para dentro do teu mundo...

«Horas, horas sem fim,
graves, profundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.»


(Eugénio de Andrade)

Há dias em que acordamos e tudo parece tão claro, que até nos surpreendemos como determinada decisão não tinha ocorrido já, como certeza indubitável no nosso coração... Acordei, não sei se hoje, não sei se desde o início da nossa história, com a decisão irrevogável, mas indizível de querer ficar contigo...
Por isso, te peço, que penses em mim, não mais como uma fantasia, não mais como uma voz na escuridão de noites geladas, mas como uma mulher, que se senta num banco à beira-mar há demasiado tempo, à espera que apareças e a transportes para dentro de ti... Para dentro do teu mundo...

"Frequentas minhas mais estranhas fantasias"


«Tu nunca me esquecerás! Disseste: acredito em ti! E é desde então que a minha vida se encerra nestas palavras. É forçoso separarmo-nos; chegou o momento! Já o sabia há muito tempo, minha doce, minha triste beleza! Mas só hoje é que o compreendi. Durante todo o nosso tempo, o tempo em que tu me amaste, o meu coração confrangia-se e sangrava ao pensar no nosso amor. Acreditar-me-ás? Sinto menos sofrimento agora! Tudo devia acabar assim; era o nosso destino, eu sabia-o!...»Fiódor Dostoievski (Netotchka)
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«Frequentas minhas mais
estranhas fantasias
E todas as manhãs és
o meu pão e o leite
Me salvas do jejum nas
madrugadas frias
E a noite sempre volto a
te pedir: me aceite
Quero-te mais do que imaginas ser possível
Te trouxe um búzio mágico dessa viagem
Marinha melodia ao pé do teu ouvido
Já que pensas que sou um marinheiro audaz
Faça de conta que nada disso conta
Que não importa, excepto estarmos outra vez aqui
Abra-me novamente a tua porta
Pois eu jamais parti»
(Maria Bethânia- Todos os Lugares- Imitação da Vida)

Encontrar o meu Compasso

De longe ouço e esqueço o que temo sentir, sei que nada está no sonho, mas na vida que experimento e traço com os meus passos. Adio o mais que posso o meu confronto e convenço-me que deixei a porta aberta para a perfeição e que sofro com a constatação de que a sua existência habita nos devaneios que alimentei e que a vida que assisto não criou laços com o meu mundo imaginado.
Hoje não sei mais quem sou, quem gostaria de ser ou quem são os que me cercam... Sou um aglomerado de sonhos, de dúvidas e incertezas que se procura desembaraçar dos nós mais apertados e encontrar o seu compasso...

quinta-feira, junho 09, 2005

Cúmplices

Como explicar este amor?... Nunca ninguém o conceberá... Apenas nós os dois, porque o vivemos... Porque o sentimos real... Somos cúmplices deste desvario! Solitários nesta imensidão que nos afunda...

«O coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que falece sufocada pelas rebeliões da alma(...) e o amor, que leva ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer um refrigério.»

Camilo Castelo Branco (Amor de Perdição)

Monção

"I jumped in the river and what did I see, black eyed angels swam with me." Radiohead

O assobio do vento era o prenúncio de vendaval e chuva grossa. A rua está deserta. Mas eis que surge um homem de uma esquina sombria, outrora morta, agora renascida. O homem vem triste. Pode-se vê-lo no seu rosto. Mas não logra mostrá-lo ao mundo exterior, pois toda a sua boca se esforça por sorrir. Os olhos, porém, traem-no. Deixam antever um misto de saudade e nostalgia, cujos limites são tão indefenidos, que estas quase se confundem uma com a outra. O homem continua a caminhar. Sem rumo, diria um observador certamente distraído ou apenas adepto da observação superficial. Mas ninguém caminho sem rumo, pois mesmo não a tornando consciente, a rota que traça por tortuosos caminhos e estradas, é decerto descrita pela mente que faz caminhar o corpo.
Este homem traz dentro de si uma profunda tristeza. Não é ódio, pois o sentimento é passivo. Traz uma amargura tão grande, que o faz pensar que ela só se dará por finda, pela morte. (Nunca ninguém saberá a verdadeira razão porque a morte seduz tanto o homem como fim dos seus problemas.) O homem continua. Não fosse o movimento, e qualquer observador mais distraído o consideraria morto, tal é a desolação.
Chegou ao fim da rua. Vira à direita e entra numa ponte. Poucos passos à frente pára. Chega-se à berma da ponte e observa o rio que corre para norte, mais tarde correrá para sul, mas por agora é para norte que se dirige. Pensamentos, não os há na cabeça deste homem amargurado, agora. Pensamentos, o rio leva-os embora, como se pudesse passar dentro da cabeça do homem. Respira fundo o ar que já não aguenta respirar, de tão denso, que contém o futuro que o persegue. De um fôlego, atira-se da ponte. O vento pára. Dentro do homem submergido, executa-se a mais eterna das lutas: entre a vida e a morte. A morte vence. O rio muda de rumo. O corpo também. O vento recomeça. Começou a monção.

17. 10. 2003.

Distância que arde...

Estamos presos à distância e não há como a quebrar... É a distância que nos traz algum adormecimento e evita em nós o agir obstinado e feroz de nos consumirmos mutuamente nesta paixão. Ainda nos resta alguma sobriedade... Um invólucro invencível de sensatez... Por detrás de uma ameaçadora saudade...

«Amei-te sem o saber, e procurei a tua memória.
Nas casas vazias entrei com lanterna para roubar o teu retrato.
Mas eu já sabia como eras.
De repente, enquanto ias comigo
Toquei-te e a minha vida parou:
Estavas diante de mim, reinando sobre mim,
E ainda reinas
Como fogueira nos bosques, o fogo é o teu reino.»

Pablo Neruda (Cem Sonetos de Amor)

...

«Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e separa.»

Sophia de Mello Breyner Andresen (Coral)

Noite de Afago

«Tanta ternura que havia para dar-te
assim perdida nas brumas da penumbra
hoje são muros o que tenho por planeta
silêncios o que obtenho
e tão espaçados
valia mais nunca ter havido alento
nem esperança
nem momentos alcançados

porque dás hoje e me negas amanhã
porque luziu em teus olhos
tal vontade
se ao fim e ao cabo tudo me confirma
que partiste e está tudo por dizer
partiste e fica tudo consumado
como se nunca tivesse havido dia
e a noite fosse noite
e não afago

quando é assim valia mais partir
ou nunca começar
nunca saber
valia mais nunca te ter visto sorrir
para ter mais força de acabar este bailado
e o grito que já fomos não cair
na sarjeta do sonho confiscado

como se nunca tivesse havido dia
e a noite fosse noite
só noite
sempre noite
e não afago»

(Pedro Barroso)

Segredo

«Esta noite morri muitas vezes,
À espera de um sonho que viesse de repente
E às escuras dançasse com a minha alma
Enquanto fosses tu a conduzir
O seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
Toda a espiral das horas que se erguessem
No poço dos sentidos.
Quem és tu,promessa imaginária que me ensina
A decifrar as intenções do vento,
A música da chuva nas janelas
Sob o frio de fevereiro? O amor
Ofereceu-me o teu rosto absoluto,
Projectou os teus olhos no meu céu
E segreda-me agora uma palavra:
O teu nome - essa última fala da última
Estrela quase a morrer
Pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
E o meu sangue à procura do teu coração.»

(Fernando Pinto do Amaral)

Um imenso vazio

Fogem-me palavras todos os dias...
São efémeras, como o vento que sopra
Num mar de açucenas...

Inútil perseguir o vento,
Eu já o sabia,
porém insisto
e para quê?
Se não tens respostas para dar...

Partilhamos há quatro anos
Um imenso vazio...