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A Culpa

Por detrás de todas as calças e casacos, na parede que é escondida pelo roupeiro, existe um cofre. Quando o Sr. Joaquim se mudou para esta casa, já o cofre povoava a parede branca do compartimento que viria a ser o seu quarto. Muitas perguntas fez para si mesmo sobre o referido objecto: Porque o teriam ali colocado? O que nele teriam querido esconder? Uma quantidade enorme de questões que não adianta estar aqui a enunciar, pois não acrescentam nada a este simples e modesto relato. E, sem saber muito bem porquê, o Sr. Joaquim decidiu escondê-lo, para que se tornasse secreto, colocando-lhe à frente o roupeiro.
Não que o Sr. Joaquim tenha segredos macabros (que certamente não caberiam num simples cofre) que ninguém possa sequer suspeitar, mas, como qualquer Ser Humano, tem partes de si que não ousa contar a ninguém. Existem recantos do nosso ser que não devemos revelar ou partilhar, devemos deixá-los no conforto da nossa consciência, ao invés de lançá-las no caos do mundo exterior. E quando essa necessidade latente de esconder um recanto mais obscuro do seu ser gritar mais alto, terá naquele cofre a solução. Isto quem o pensou foi o Sr. Joaquim quando decidiu esconder o cofre.
Mas o que guarda lá dentro agora parece tão descoberto, tão nu, como se estivesse em cima da sua secretária, à vista de todos. O objecto que lá guarda causa-lhe náuseas. Guardou-o lá para o esconder de si mesmo, para que a sua consciência não o corroesse. O Ser Humano tem destas coisas: o impulso concretiza o acto, e a consciência fica parada a olhar enquanto o mal é feito, e depois ainda tem coragem para nos reprimir. Mas, como disse, parece não existir nada que separe este homem do objecto que escondeu dentro do cofre. É como se por entre as portas de madeira do roupeiro e calças e casacos conseguisse ver o objecto que tanto teme. O Sr. Joaquim sua. Sua como se tivesse um oceano a transbordar do seu interior. Já está em tronco nu. Estando em pleno Inverno, não parece uma atitude muito sã, a não ser que estivessem cem aquecedores ligados dentro de casa, o que não acontece, mas é para vermos até onde a tensão e o medo nos podem levar. Lentamente, num sumptuoso exercício de memória, vai relembrando todos os pormenores daquela noite de escuridão infinita, de breu ilimitado, onde a lua era a única fonte de luz, débil, diga-se, e onde cada passo parece guiar-nos para um abismo que não vemos, mas que temos consciência que existe.
Há já um mês que todos os dias se dirigia àquela mata, onde nunca passa ninguém, longe de tudo e de todos, para descarregar a sua raiva, disparando uns tiros, ora para o ar, ora contra as árvores, com o seu revolver. E, nessa noite, algo aconteceu que não estava nos seus planos. Um transeunte atravessava tranquilamente a mata quando é atingido por uma bala perdida, vinda do revólver do Sr. Joaquim. Ora, desorientado, o Sr. Joaquim acorreu, ainda assim, a ajudar o homem que tinha atingido. Mas, por infortúnio, quis o destino que a bala perfurasse logo o órgão mais importante do corpo humano, aquele que nos faz tomar decisões, que vulgarmente conhecemos por cérebro. Não havia nada a fazer, o homem estava morto, e o responsável pela sua morte era o nosso herói.

(O homem fixava de uma forma inumana Joaquim, como se a alma estivesse a ver por detrás do corpo inanimado).

O Sr. Joaquim limpa a testa com um lenço que tinha em cima da secretária. São duas da madrugada. Tenta acalmar-se, mas o seu coração bate como na noite em que disparou o fatídico tiro. Há dois dias que não dorme. Sempre que fecha os olhos, a imagem do homem a olhar para si aparece, como um fantasma perpétuo. Tudo lhe parece desconfortável: a casa demasiado vazia; o quarto demasiado opressor; a rua demasiado povoada. Não sabe o que fazer. Acabou de tomar dois comprimidos para dormir. Daqui a minutos estará no mundo dos sonhos, tentando fugir a estes pesadelos da realidade.



O sono foi curto. Os fantasmas também o perseguiram em sonhos, transformando-os em pesadelos impossíveis de suportar. Olhou o relógio eram sete da manhã, Nada mau, pensou. Para quem não dormia há dois dias, dormir tantas horas era um milagre. Mas foi como se não tivesse dormido: sentia-se tão mal como antes; a consciência pesava-lhe como se mil quilos de chumbo se tivessem instalado dentro da sua mente; a culpa corroía-o por dentro, como se de um cancro se tratasse, que vai minando cada pedaço do corpo, só que neste caso, a parte afectada é a consciência. Não aguentava. A consciência de que tinha morto uma pessoa e de que nada fez para a salvar não o deixava pensar. Além disso, quando ligou a televisão a fim de se distrair um pouco, todos os canais davam uma notícia de última hora de um rapaz assassinado, com um tiro na cabeça, numa mata. E isto foi a gota de água. Não aguentou mais e tomou uma decisão, uma decisão desesperada, mas, na sua opinião, capaz de o libertar da culpa que sentia.
Afastou o roupeiro e abriu o cofre. Tirou do seu interior o revolver e colocou-o na boca. Fechou os olhos. Viu o rapaz a olhar para si, morto. Orou ao seu deus sem nome que nunca ninguém viu. Pediu piedade. Puxou o gatilho.

(…silêncio…)

A culpa desaparecera, mas a consciência não…

22. 05. 04.

Consciência é a amarra que nos prende ao bom porto da sapiência, é a brisa leve que ofegante espreita por cima do ombro da paciência.

A consciência pode ser isso tudo, não duvido. Mas às vezes é uma filha da puta, sem nome, que só apetece mandar à merda. Concordo que sem consciência seríamos prepotentes, mas por vezes dá vontade de descartar toda a consciência, para depois ela não nos maçar com remorsos que nem sequer mereçemos.

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