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Sombras

"Ain't found a way to kill me yet
Eyes burn with stinging sweat
seems every path leads me to nowhere
wife and kids and household pet
army green was no safe bet
the bullets scream to me from somwhere."
Alice In Chains

Lentamente me conduzo por entre as árvores, nesta floresta onde não se consegue distinguir o que é real do que é ilusão. Sombras; tudo se resume a sombras. Já nem tenho a certeza se sou ou não real. Mas afinal, se não fosse essa consciência da minha realidade, perene e persistente, que outra razão teria eu para justificar os passos que dou, provavelmente, em vão?
(não sei)
A verdade é que de há uns tempos para cá, que a minha existência é um enorme e assustador ponto de interrogação, já não existem certezas, nem sequer vislumbres delas. Tudo o que me parecia certo, um dado adquirido, um facto consumado, irrevogávelmente verdadeiro, desapareceu e a única certeza que, dantes, eu tinha, que permanecia invicta, acima das outras, como se fosse feita de uma massa mais resistente às resignações humanas, caiu: agora, já nem a certeza de que existo se mantém.
No meio da tanta sombra, também eu me tornei uma? Não sei. Como disse, tudo na minha vida são dúvidas, e as respostas não se dignam a mostrar-se perante os meus olhos. Será que posso chamar a esta sucessão de dias, a este amontoado de passados, a estes desejos de futuro, a este presente incerto, vida?
(Toda esta obscuridade é apenas iluminada pela fraca luz da lua nova. Pressinto na escuridão os olhares dos seres vivos a olharem para este ser meio morto - eu)
Qual será o propósito desta viajem? Não sei. A única coisa que sei, é que, num momento da minha vida que não me consigo recordar, eu optei por alguma coisa, que me segrega agora, da qual sou dependente e da qual sou incapaz de me libertar. Talvez seja só solidão auto-imposta. Mas eu na altura sublinhei: eu não quero estar só, quero estar sozinho. Mas quem me deu as directrizes não percebeu. E eu fiquei só. Acho que já me habituei à solidão, e tudo o que o ser humano assume como hábito, entranha-se, na carne, na alma, nas paredes do nosso universo pessoal, e só muito dificilmente conseguimos apagar os vestigios desse mesmo hábito. Mas por outro lado, já não consigo suportá-la.
Agora mesmo, ela caminha, comigo, a meu lado, como um corpo vivo, enquanto eu me dirijo para lado nenhum. Ela não tem cara. Todo o seu corpo é um espelho. É por isso que evito olhar para ela: porque se olhar vejo-me a mim. E não há nada mais doloroso do que ver a própria imagem quando não sabemos quem somos.
Agora percebo qual é o propósito da minha viajem,
(pego no revólver):
A morte. Só com a morte me poderei libertar desta solidão que me persegue. Não existe outra solução. De um fôlego, carrego no gatilho. O corpo da solidão cai, morto, na lama, e esvai-se em cinzas, pois não havia essência naquele corpo. E todas as sombras são expelidas do meu corpo.
No momento seguinte surge a resolução: voltei a ser um homem outra vez.

01.01.2004.