sábado, abril 29, 2006

Ensaio VIII

acontecera.
o medo passara a possuí-la.
vivia agora aos tropeções pelas calçadas, o ventre em chamas, o peito negro. vivia, mas era como se jamais voltasse.

domingo, abril 16, 2006

Ensaio VII

Chove tanto. Percorro os lugares antigos.
Não estás lá.
Chove na rua, caminho descalça, nada vejo, sigo pelas avenidas estreitas, quase cega. Corro. Grito por ti. Não vens.
Chove tanto, tanto. Ninguém vê as lágrimas que escorrem do céu, do paraíso no meu olhar. Corro por ti, para ti, em ti. Não te encontro.
As ruas desabam sobre mim, sinto as pedras da calçada nuas. Caiem paredes, muros e telhados. Desabam sobre mim as estruturas fixas da vida.
Choro e comigo chora todo um céu numa tempestade irrepetitível.
Nenhum sinal de ti.
Grito e comigo os relâmpagos. Grita por ti todo o meu corpo. Grito. Grito. E os relâmpagos e o vento e as águas. Corro tanto.
A chuva dissolve-me a vontade. Desapareço pelas valetas. Escoo com as águas.
Desapareço e comigo tudo que sinto e as memórias e a mágoa e a saudade...

sexta-feira, abril 14, 2006

ensaio. em saia.

com os olhos rasos de cansaço e do alcool tragado, peço que ma tragam de volta. meu corpo dormente da vodka e da saudade. e tudo em mim me parece errado. e nem sequer estou em frente ao espelho. estou cansado de me saber miserável, e de me saber sozinho sem o seu corpo como escudo protector. sim, quando me sugas inteiro, é como se me puxasses para dentro de ti. mas agora, fora de ti e demasiado dentro de mim, só me sei vazio. isto não é uma promessa, se eu soubesse prometer, prometia amar-te para sempre, mas a eternidade nem existe, e eu tenho medo de prometer e cumprir e que tu não queiras promessas dessas, e que eu não saiba ser forte o suficiente para te deixar. para te deixar ser feliz.

segunda-feira, abril 10, 2006

carta aberta aos meus demónios

venho deste modo protestar contra esta saudade emergente, de não te ver, mas também de me saber fraco o bastante para não viver quando não estás. e como amigos também não sei bem o que sejam, arrasto-me aqui pelo quarto, sem ter coragem para me deitar na cama e hibernar. há tantas coisas sobre as quais não posso verter uma palavra, e para onde quer que me vire não encontro gente a quem possa confessar, confessar-me, confessar os outros. não encontro ninguém onde eu possa existir e insistir nessa obcessão. eu preciso de dizer. e a literatura que é, senão uma confissão lamechas dos nossos demónios, dos nossos tormentos? por isso, demónios, deixem-me em paz. nem precisa de ser de uma vez por todas. bastava ser só desta vez, que esta dificuldade em respirar está a deixar-me preocupado. entretanto, vou escrevendo como quem estivesse a fazer o seu testamento: deixo uns poemas àquela, umas canções à outra, o amor é capaz de se extinguir, mas teria de ser para ti, antes ou depois da minha morte, sempre. deixo também uns abraços por aí, uns versos atirados ao ar em jeito de chalaça para outra gente, e uns quantos olhares cumplices, uns beijos mais ou menos perdidos, com sétimas intenções, e umas lágrimas de vodka partilhadas para alguns poucos resistentes. aos outros, deixo-os, apenas. e já vão com sorte: é um presente precioso. mas quê? testamento? tenho lá eu alguma coisa para deixar a alguém. deixo só aqui firmada, esta carta aberta aos meus demónios, que é como quem diz, carta de suicídio, para quando me decidir a ser cobarde por inteiro.

segunda-feira, abril 03, 2006

Ensaio IV

Ela pisou na garrafa com raiva, era a trigésima vez que ele falava de promessas. Os cacos gritavam de dor, mas era um vício indestrutível. Promessas fugiam-lhe dos lábios como serpentes. Estava bêbado e tinha sede. Ele gemia com os cacos fustigados. Os ossos também se quebravam um a um debaixo dos seus pés. Tinha ferido os pés nos vidros agonizantes. Mas a raiva adormecia a dor. Havia outra que reinava e era majestosa. Ela pisava-lhe o peito agora. Sufocava. Os membros agitavam-se de tanta sede que sentiam. Danças convulsas em torno dos músculos sombrios. E os vidros do seu sangue amorteciam a queda.
Ela pisava nos vidros da vida que perdera. Ele morria sob os seus pés, implorando pela morte que o vencera.