venho deste modo protestar contra esta saudade emergente, de não te ver, mas também de me saber fraco o bastante para não viver quando não estás. e como amigos também não sei bem o que sejam, arrasto-me aqui pelo quarto, sem ter coragem para me deitar na cama e hibernar. há tantas coisas sobre as quais não posso verter uma palavra, e para onde quer que me vire não encontro gente a quem possa confessar, confessar-me, confessar os outros. não encontro ninguém onde eu possa existir e insistir nessa obcessão. eu preciso de dizer. e a literatura que é, senão uma confissão lamechas dos nossos demónios, dos nossos tormentos? por isso, demónios, deixem-me em paz. nem precisa de ser de uma vez por todas. bastava ser só desta vez, que esta dificuldade em respirar está a deixar-me preocupado. entretanto, vou escrevendo como quem estivesse a fazer o seu testamento: deixo uns poemas àquela, umas canções à outra, o amor é capaz de se extinguir, mas teria de ser para ti, antes ou depois da minha morte, sempre. deixo também uns abraços por aí, uns versos atirados ao ar em jeito de chalaça para outra gente, e uns quantos olhares cumplices, uns beijos mais ou menos perdidos, com sétimas intenções, e umas lágrimas de vodka partilhadas para alguns poucos resistentes. aos outros, deixo-os, apenas. e já vão com sorte: é um presente precioso. mas quê? testamento? tenho lá eu alguma coisa para deixar a alguém. deixo só aqui firmada, esta carta aberta aos meus demónios, que é como quem diz, carta de suicídio, para quando me decidir a ser cobarde por inteiro.