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O Reflexo do Ódio

Sempre fui bem sucedido, tanto profissional como emocionalmente na vida. E só hoje compreendo que o modo de vida que adoptei, e que por conseguinte me levou a ser bem sucedido (ainda que este sucesso seja discutível, como quase tudo, aliás) foi um grande erro. Todos os dias eu olhava a minha imagem reflectida no espelho. E, num dia em que não conseguia esconder o ódio de quem olhasse, porquanto ele fervilhava como água em ebulição e ardia como magma de um inferno vulcânico em meus olhos, decidi que a partir desse dia, deixaria todo o meu ódio, todas as minhas frustrações, todas as partes mais sujas do meu carácter, todos os traços e riscos de loucura da minha personalidade presos no espelho onde me mirava todos os dias. Passei então a ser amável perante tudo e todos. Todos me amavam, menos eu. Todos me achavam um homem exemplar, menos eu. Porque o que eu mostrava não era eu.
E todos os dias eu alimentava o reflexo no espelho com tudo o que era mau em mim. E ele crescia. A sua inteligência e perspicácia aumentavam, aos poucos, ele ganhava vida própria. Por vezes perguntava-lhe se gostava de ali estar, acarretando com todo o meu ódio. Ele desprezava-me, e eu via o ódio dele, quer dizer, o meu ódio, não sei, arder nos seus olhos. E eu vivia a minha vida fingindo não ter pecados, nem rancores, nem ódios, nem frustrações, fingindo ser perfeito, quando na verdade não o era, como ninguém é, de todo. Mas assim é o ser humano, passa para segundo plano, ignora os sentimentos mais horrendos, quando eles são tão legítimos como os bons, e por vezes mais sinceros, quando deveria aprender a viver com eles. Foi então que tudo chegou a um ponto extremo. O ódio fortaleceu-se, e o meu lado bom foi-se tornando mais frágil. Mas não é por ter sido uma pessoa que eu não era, que sinto estes irreversíveis remorsos. Mas sim por saber que a minha parte má anda pelo mundo a espalhar o meu ódio, e que eu, a parte supostamente boa, não posso fazer nada, estou impotente, pois estou preso neste espelho.

23/10/03